— Quantas pessoas no mundo estão actualmente ameaçadas de morrer de fome?
— A FAO (Food and Agricultural Organization), Organização para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas, avalia, no seu último relatório, em mais de 30 milhões o número de pessoas que morreram de fome em 1999 e, para o mesmo período, em mais de 828 milhões de seres torturados pela desnutrição grave e permanente. São homens, mulheres e crianças que, devido à falta de alimentos, padecem de lesões frequentemente irreversíveis. Ou então morrem num prazo mais ou menos breve, ou vegetam num estado de deficiência grave – cegueira, raquitismo, desenvolvimento precário da capacidade cerebral, etc.
Tomemos o exemplo da cegueira: cada ano, sete milhões de pessoas, normalmente crianças, perdem a vista, na maioria das vezes por falta de uma alimentação suficiente ou como consequência de enfermidades vinculadas ao subdesenvolvimento. Cento e quarenta e seis milhões de cegos vivem nos países da África, da Ásia e da América Latina. Em 1999, Gore Brundtland, directora da Organização Mundial da Saúde, ao apresentar o seu plano “Visão 2020” em Genebra, disse: Oitenta por cento dos afectados na vista seriam perfeitamente evitáveis. Sobretudo por meio de uma dose regular de vitamina A para as crianças pequenas. Em 1990, havia 822 milhões de pessoas severamente afectadas pelo flagelo da fome. Podemos ler de duas maneiras estas estatísticas. Primeira leitura: as vítimas da subalimentação aumentam sem cessar no mundo, especialmente nos países do Sul; mas se comparamos os mártires do flagelo da fome com a progressão demográfica da população mundial, constatamos um ligeiro retrocesso. Em 1990, 20% da humanidade sofria de subalimentação extrema; oito anos depois, “só” 19%.
— Onde vivem as pessoas mais gravemente subalimentadas?
— No sul e leste da Ásia, 18% dos homens, mulheres e crianças padecem de uma severa desnutrição. Na África, o seu número alcança 35% da população continental. Na América Latina e no Caribe, 14%. As três quartas partes dos “gravemente subalimentados” do planeta são gente do campo; a outra quarta parte são habitantes das periferias que se amontoam em torno das megalópoles do Terceiro Mundo.
— A nossa Terra poderia alimentar convenientemente e cada dia todos os seus habitantes?
— Não só isso, mas poderia alimentar pelo menos o dobro da população mundial actual. Hoje em dia somos quase seis biliões de seres humanos na Terra. A FAO, há mais de quinze anos, elaborou um relatório no qual assinalava que o mundo, no estado actual das forcas de produção agrícola, poderia alimentar sem problema mais de doze biliões de seres humanos. Alimentar quer dizer fornecer a cada homem, mulher e criança uma ração equivalente a 2400 ou 2700 calorias diárias, uma vez que as necessidades alimentares variam segundo os indivíduos, em função do trabalho que realizam e das zonas climáticas onde vivem.
— O flagelo da fome não é então uma fatalidade?
— De modo algum. Se a distribuição de alimentos na Terra fosse justa, haveria comida suficiente para todo o mundo.
— Por que razão nunca ninguém nos fala na escola da fome no mundo e das pessoas que a provocam e daquelas que a combatem?
— Para mim, isso também é um mistério. Muitos professores de institutos e de escolas são pessoas abertas, generosas e estão profundamente solidarizadas com a luta dos povos do Terceiro Mundo. Muitos deles alertam os seus alunos quando se declara uma fome grave e promovem-se colectas públicas. No entanto, não sei de nenhuma escola onde o tema da fome, que mata todos os dias mais gente do que todas as guerras do planeta juntas, figure no seu programa. Não existe nenhum tipo de ensino onde se analise, se discuta o problema da fome, se examinem as suas raízes e os meios de lhe dar um fim.
Mas os técnicos internacionais dizem as coisas bem claras. Ouve, por exemplo, esta frase que é a conclusão de um relatório da FAO de 1998: Recent trends give no room for complacency as progress in some regions has been more than offset by a deterioration in others. (Os últimos dados não permitem contemplações, uma vez que o progresso numas regiões tem sido anulado pela deterioração noutras.) Isto quer dizer que as batalhas ganhas numa frente são imediatamente anuladas pelas derrotas sofridas noutra.
Os bons sentimentos não bastam, são um luxo para os filhos dos ricos. A calamidade da fome manifesta-se de mil maneiras. O seu aparecimento e os seus efeitos exigem análises precisas e pormenorizadas. Mas a escola não diz nada, não cumpre a sua função. Os adolescentes frequentemente saem dela cheios de bons sentimentos e de uma vaga convicção de solidariedade, mas nunca com um verdadeiro conhecimento, uma clara consciência das origens e dos estragos da fome.
— Como se a fome fosse um tabu?
— Exactamente. Um tabu que dura há muito tempo. Já em 1952 o brasileiro Josué de Castro dedicava todo um capítulo do seu célebre livro Geopolítica da fome a esse “tabu da fome”. A sua explicação é interessante: as pessoas sentem-se tão envergonhadas por saber que uma grande parte dos seus semelhantes morrem por falta de alimento, que ocultam o escândalo com um espesso silêncio. Esta vergonha é compartilhada pela escola, pelos governos e pela maioria de nós.
O nível de alimentação está em relação directa com o nível de bem-estar e com o nível de saúde das pessoas. Por um lado, onde não se come o suficiente, encontramos pobreza, miséria, desnutrição, doença, fome e morte. Por outro, no extremo oposto, onde há meios de subsistência e alimentos, encontramos esperança desde o nascimento, saúde e vida.
Já no ventre da mãe, o bebé sofre as consequências desta desigualdade, inclusivamente na constituição de seu intelecto. A desnutrição da mãe durante a gestação – quando o bebé deve desenvolver o conjunto de células que o constituirão como um ser dotado de todas as suas faculdades – diminui as possibilidades de que a criança nasça, pois a placenta – alimento, água, oxigénio e anticorpos do bebé instalado no útero – não escapa aos danos causados pelas carências de alimentação. A mãe deve nutrir-se convenientemente desde a formação do embrião.
A constituição física e intelectual da criança, a sua capacidade de desenvolvimento e a sua força para o trabalho também dependem da alimentação que vai receber desde o momento do seu nascimento. A criança chega ao mundo num ambiente condicionado: ou com muitos privilégios ou com muitas privações. Nos primeiros anos da história da humanidade, o mundo era aquele no qual o macho mais forte se apropriava da comida da qual necessitavam a mulher e a criança. Hoje, a história não mudou em absoluto, porque os poderosos continuam apropriando-se da comida.
— Por quê esses esqueletos da fome? Por quê esse martírio quotidiano, interminável, para tantas centenas de milhões de seres humanos?
— A causa principal das hecatombes por subalimentação e por fome aguda é a desigual distribuição das riquezas do nosso planeta. Esta desigualdade é negativamente dinâmica: os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Em 1960, 20% dos habitantes mais ricos do mundo desfrutavam de uma renda 3 1 vezes superior à dos 20% mais pobres. Em 1998, o rendimento dos 20% mais ricos é 83 vezes superior à dos 20% mais pobres.
A concentração do rendimento e das riquezas nas mãos de uns poucos progride a grande velocidade.
O conceito de desigualdade soa-nos irreal e o seu significado é insuficiente. O termo aparece num mundo que já não se assusta com as estatísticas. As cifras acima citadas escondem uma realidade de sofrimento e de desespero. A desigualdade negativamente dinâmica que rege a ordem actual do mundo produz a seguinte situação: por um lado, um poder político, económico, ideológico, científico e militar sem limites identificáveis, exercido por uma escassa oligarquia transnacional; por outro, a falta de vida, o desespero e o flagelo da fome vividos por centenas de milhões de seres anónimos. A oligarquia decide o destino da multidão. A massa de vítimas anónimas padece, impotente, a sua própria agonia. Só a brutal imbecilidade de um regime de classes sociais existentes antes do seu nascimento, de ideologias discriminatórias, de privilégios defendidos pela violência explica a desigualdade entre os seres humanos.
A política deve velar para que todos possam saciar a fome. Seria horrível tomarmos como natural o facto de todos os anos morrerem dezenas de milhões de pessoas por causa da subalimentação crónica e da fome aguda. A fatalidade não preside à ordem mortal do mundo. Basta lembrar que no actual estado das forcas produtivas agrícolas, seria possível alimentar sem problemas doze mil milhões de pessoas. Alimentar significa proporcionar a cada indivíduo 2600 calorias por dia. A população actual do mundo chega a menos de seis mil milhões de pessoas. Conclusão: estamos diante de uma falta contingente e não de uma falta objectiva de alimentos. Por outras palavras, o problema da grave fome no mundo é um problema social. As centenas de milhões de pessoas que morrem todos os anos de subalimentação aguda morrem por causa da injusta distribuição de alimentos disponíveis no planeta.
A Acção contra a Fome, organização não-governamental (ONG) de um compromisso exemplar, constata que “um grande número de pobres no mundo carece do alimento necessário, na medida em que a produção alimentar se ajusta à demanda solvente” Quem tem dinheiro, come. Quem não tem, morre lentamente de fome.
Trata-se portanto de civilizar o actual jugo do capitalismo selvagem. A economia mundial é fruto da produção, distribuição, intercâmbio e consumo de alimentos. Afirmar a autonomia da economia em relação à fome é absurdo ou, pior ainda, é um crime. Não se pode abandonar a luta contra essa catástrofe ao livre jogo do mercado.
Todos os mecanismos da economia mundial devem submeter-se a este imperativo primordial: vencer a fome, alimentar convenientemente todos os habitantes do planeta. Para impor este imperativo é preciso criar uma estrutura jurídica internacional, apoiado em tratados e normas.
Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o fraco e o forte, é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. A liberdade total do mercado é sinónimo de opressão; a lei é a primeira garantia da justiça social. O mercado mundial necessita de normas e de uma restrição imposta pela vontade colectiva dos povos. A luta contra a maximização do lucro como única motivação dos protagonistas que dominam o mercado e a luta contra a aceitação passiva da miséria são imperativos urgentes.
O ser humano é o único vertebrado que pode sentir na sua consciência o sofrimento do outro.
Será que a constituição de uma consciência da identidade, da solidariedade radical com aquele que sofre se infere de um projecto utópico? Não. No decurso da história já ocorreram alguns saltos qualitativos análogos. Por exemplo, o nascimento do Estado. Numa época remota, os humanos fizeram uma escolha fundamental: então, a solidariedade, a identificação com o outro limitavam-se à família, ao clã, por conseguinte, àqueles cujo rosto era conhecido e cuja presença física era sensível; com o nascimento da nação e do Estado, o ser humano fez-se pela primeira vez solidário com aqueles que não conhecia e com os que provavelmente nunca encontraria. Acabava de nascer um sentimento de identidade nacional, algumas instituições de solidariedade, uma consciência suprafamiliar, uma lei comum.
A única identidade humana válida é a que nasce do encontro real ou imaginário com os outros, do acto de solidariedade.
Não pode haver um mundo dentro do mundo, uma inserção de bem-estar num mundo de dor. É inaceitável uma economia mundial que relega para o não-ser a sexta parte da humanidade. Se o flagelo da fome não desaparecer rapidamente do nosso planeta, não haverá humanidade possível. Portanto, é preciso reintegrar na humanidade essa “fracção sofredora”, que hoje está excluída e perece na noite.
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